O vôo para a dignidade

25/01/2012

Por muitos anos, um bairro da cidade de Lajeado, localizada há 100 quilômetros de Porto Alegre, manteve o estigma histórico de ser um lixão humano. Um local onde eram depositados os resíduos produzidos pela população da cidade e, também, as famílias vindas de outros municípios em busca de uma nova realidade. O bairro Santo Antônio, por exemplo, abriga cerca de seis mil pessoas, sendo que, metade destas são crianças.

Com tantas peculiaridades, a Vila Santo Antônio foi escolhida para ser o modelo de uma utopia, idealizada para libertar os oprimidos, vítimas da pobreza, da violência e da discriminação. Dois ideais de vida se uniram, longe de casa, para concretizar esse sonho. Movidos pelo fascínio do resgate da cidadania, um empresário brasileiro, radicado na França há 14 anos, e uma historiadora, também brasileira, criaram a Organização Não Governamental Abaquar.

O nome, segundo o empresário Marcelo Salvatori, idealizador da ONG, surgiu por acaso. O termo “abaquar” foi o que se adequou melhor aos conceitos da entidade. “A palavra abaquar em tupi guarani significa homem que voa, que no nosso entender diz respeito a um homem que sofre um processo de desalienação e, assim, é livre para sonhar, ir em frente e lutar”, justifica.

Depois de registrada na prefeitura de Paris, a ONG franco-brasileira, sem fins lucrativos, inaugurou sua sede no Brasil em 12 de julho de 2002. Uma casa modesta em um terreno de 3 hectares no meio do bairro recebe cerca de 150 crianças da comunidade, que participam de oficinas em horários alternativos. Elas contam com a boa vontade de instrutores voluntários de diferentes áreas e condições econômicas, como psicólogos, jornalistas, professores, domésticas, industriários, entre outros. Nas oficinas,  ensinam teatro, balé, culinária, artesanato ou violão, mas, também, resgatam a auto-estima das crianças e adolescentes que vêem na ONG o desafio de repensar suas origens. Entre as crianças está Nadiane Pires da Silva, de 11 anos, que freqüenta as oficinas desde a inauguração da sede. Ela acha que muita coisa mudou no bairro com a chegada da Abaquar. “Eles tiram os adolescentes da rua que, ao invés de fumar drogas, aprendem a respeitar os mais velhos e a conviver uns com os outros”, explica.

Marcelo Salvatori, presidente da ONG, já tinha em mente o esboço do sonho há muitos anos, desde a sua juventude no Brasil, durante o regime militar. Quando conheceu a historiadora Dinamara Feldens em Paris, descobriu que, além da militância e referências em comum, tinham um sonho compartilhado. “Quando encontrei a Dinamara, durante seu doutorado, descobrimos que tínhamos os mesmos ideais. Ela me falou de um projeto chamado Vida, que havia trabalhado na Vila Santo Antônio, entre os anos de 1995 à 1998. Devido a problemas políticos, o projeto foi reduzido”, conta o fundador da ONG. A partir daí, decidiram juntar forças e recomeçar de onde o projeto parou, com a criação da ONG, porém, desta vez, sem nenhum vínculo político ou religioso e com financiamento privado. “Quando o projeto acabou,  dediquei-me ao meu mestrado e doutorado”, conta a historiadora. Trabalhando a subjetividade feminina, Dinamara descobriu nas meninas do bairro Santo Antônio uma fonte de estudos peculiar, em função da convivência diária com a violência e pobreza.

Salvatori e Dinamara pretendiam, inicialmente, atingir 300 crianças ou mais. “Hoje eu acredito que oficinas menores, que atendam mais particularmente as crianças, têm um efeito melhor”, reconhece Dinamara. Os dois admitem que o sonho se deslocou, que a ilusão acabou. “Agora penso que a grande mudança, aquilo que a gente idealizou de um mundo melhor para as pessoas carentes, reside nos pequenos detalhes”, confessa.

A partir do momento que surgiu a Abaquar, apareceram os problemas de aceitação, estruturação e organização. Mesmo à distância, Salvatori mantém um olho atento às ações da organização e possui um contato quase diário com Dinamara et Angelica Munhoz, que  auxilia e coordena o projeto junto a ele. “O único problema de administrar à distancia esse tipo de ação é que eu não consigo manter o contato com as crianças diariamente, e assim acompanhá-las no processo de retomada de sua cidadania”, desabafa Salvatori. Quando questionado sobre seu idealismo, Salvatori contra-ataca. “Sei que não posso mudar o mundo, mas estou fazendo minha parte e, com certeza, um projeto desses pode ajudar na implantação de outras ONG’s”.

Mantida principalmente com o apoio da empresa de equipamentos de segurança do próprio Salvatori, situada na França, a Abaquar luta para arrecadar recursos externos que ajudem na melhoria das obras do local. A organização está tentando captar recursos, porém a situação ainda é difícil. No início do ano, uma série de pessoas juntou-se à causa Abaquar e, em conjunto, começaram a procurar soluções.“Queremos convencer os empresários de Lajeado que com o mínimo que eles doem para a instituição podem mudar suas vidas  também”, diz Salvatori. Ele acredita que é um investimento social para as empresas. “Significa apenas 0,01% do que gastamos num final de semana, mas pode transformar uma sociedade”, reforça.

Uma das maiores dificuldades da organização é conseguir o apoio de voluntários. “Infelizmente existem pessoas que sabem e têm condições de trabalhar bem com essas crianças e assim tirar o melhor delas, mas querem receber pelo trabalho”, explica a líder comunitária e administradora da ONG, Petronila Andrade.

“No início, várias pessoas inscreveram-se como voluntárias. Eu as levava para a vila, mas no outro dia nem apareciam. É uma realidade dura e muitos não conseguem lidar com ela”, lamenta Dinamara. Mesmo assim, para a organizadora, os motivos que fazem muitos temerem a situação exposta são os mesmos que chamam a atenção quando outras pessoas decidem ficar e batalhar em nome do próximo. Por outro lado, acredita que essa realidade também é apaixonante, pois, segundo ela, o motivo não é o dinheiro, mas sim a vontade de ajudar o outro. “Isso é o que dá vida e sustento ao projeto. O que está movendo o projeto são os quereres das pessoas, que são subjetivos, variados e múltiplos, mas que de toda a forma têm um fio em comum. É isso que dá a cara da Abaquar”, completa.

Além da falta de apoio, tanto na parte orçamentária quanto na mão-de-obra, a ONG, por situar-se num local de baixa renda, também sofre com os problemas locais, como o tráfico de drogas e a prostituição. “Os jovens daqui são visados, sempre têm um olheiro tentando entrar no grupo”, desabafa Petronila. Na própria sede da Abaquar eles já tentaram entrar. A intenção é seduzir e transformar os jovens nos chamados “laranjas”, isto é, aqueles que transportam a droga dentro da vila. Existem também casos semelhantes em relação à prostituição de menores, quando donas de bordéis entram no bairro e levam meninas para fazer programas. “Às vezes temos que ser firmes e não deixar que esse tipo de influência entre na organização. É por esses motivos que a gente dá um duro danado, tentando levantar a auto-estima desses jovens para, assim, terem condições de se desvencilhar desse tipo de comportamento e, conseqüentemente, enxergar uma nova realidade”, conta Petronila.

Mesmo com as dificuldades e contratempos, que fazem parte da rotina de uma ONG, a Abaquar está conquistando seu espaço, porque ajuda os moradores e cativa a cada dia novos adeptos para seu trabalho voluntário. O trabalho árduo compensa e está aberto à todos, como a própria Dinamara diz. “Todo mundo tem o que dar e tem o que receber. É um espaço onde não existe dono, política, cor ou credo. Não temos intenções escusas, pois o que queremos é construir algo juntos para um bem maior, o bem dessas pessoas, o que realmente é muito reconfortante”. Assim, o homem que voa cria asas e alça vôo em direção à sua cidadania. Mas ele não voa sozinho.

Para ajudar: Interessados em ajudar, como oficineiros, voluntários ou através de doações podem entrar em contato através dos telefones (51)3748 55 90, através do e-mail contact.br@abaquar.org ou na sede do Abaquar na Rua Bernardino Pinto, 710, Bairro Santo Antônio. Toda verba arrecadada será investida em obras de ampliação da sede da Abaquar e material para as oficinas.

Texto de Vera Darde